- Você tá com a carteira de vacinação aí?
- Tá aqui... – e mostrei-lhe uma folha amarelada, até a cópia já era antiga. Além da cor amarelada do papel, a
identificação manuscrita, a tinta da caneta já desgastada pelo tempo, as datas, tudo lembrava a uma época remota. A única
coisa que não parecia ser antiga era a lembrança dos dias de vacina.
Para se ter uma ideia, a função era delegada a meu pai. E
isso significa que a coisa era muito séria. Quando a minha mãe abria mão das
rédeas da situação e passava a obrigatoriedade para o meu pai significava que era
necessário alguém mais bravo (ou seja, forte o suficiente para não amolecer
diante do choro manhoso). Ficava para o
meu pai a função de acabar com a frescura.
-Vou chamar o seu pai! - era a ameaça mais eficiente porque
eu sabia como seria se ela se cumprisse. Isso acontecia porque, confesso,
sempre tive um dom especial para os dramas e meu pai não dava a menor bola pra
eles: “Seu mal é sono!!!” Ele dizia
sabendo muito bem que aquele choro sentido não passava de uma manha de
criança.
Mas diferente da manha para tomar o remédio ruim, comer o
feijão e fazer tarefa, o problema dos dias de vacina era o medo. Eu sentia um
medo absurdo de agulhas. Ou melhor, o medo era da dor. O que me apavorava não
era a agulha em si, mas a dor que eu sabia que ela causaria. Sempre fiz
qualquer negócio para evitar as injeções. Tomava remédio amargo, jurava
juradinho que não daria trabalho para engolir comprimidos, tomar antibióticos,
fazer inalações, desde que eu me livrasse das injeções. Acontece que, com a
vacina, nenhum dos meus argumentos funcionaria. Ela era importante, evita doenças
e para ela não há alternativa.
E aí eu chorava, esperneava , gritava, sofria antes mesmo da agulha
encostar em mim. E queria ver minha absoluta revolta era dizer: fica relaxada,
se não relaxar, é pior. E me diga: como relaxar diante da iminência da dor?
- Você não tomou o reforço da vacina de tétano... – ela perguntou afirmando enquanto eu limitei a concordar com a cabeça, conformada com a ideia de que a tentativa de fuga não seria definitiva. – Precisa
tomar! Você é professora, às vezes, pode se machucar com alguma coisa. Tem que
tomar.
Eu sabia que ela estava certa. Aliás, eu sempre soube dos
bons argumentos das vacinas. Mas a fama
da tal vacina de tétano aos quinze anos só agravava a situação. Não havia um
que dissesse que não doía. Pelo contrário, doía e muito. E assim, eu fugi dela
por mais de dez anos.
E lá estava eu, uma mulher adulta, com minha carteirinha
amarelada na mão, me sentindo ridícula por estar com medo da dor. E mais: com
medo de passar vergonha, chorar muito ou algo do tipo. Minha mãe não teria que brigar
comigo, meu pai não teria que me segurar, peguei meu carro e fui, sozinha, de
quase livre e espontânea vontade.
- Relaxa o braço - nem o tom amoroso e compreensivo da
atendente fazia diminuir a revolta com essa recomendação- uma picadinha...
Fechei os olhos, bem forte, como eu costumava fazer
embaixo do cobertor quando achava que tinha um fantasma no meu quarto, e esperei a dor
excruciante.
E ela não veio. Doeu, mas não chegou nem perto do que eu
achava que seria. Aliás, o que será que eu esperava? Abri os olhos percebendo que
foram tantos anos com medo daquela agulha e ela ficou menos de dez segundos no
meu corpo. Fiquei com mais de dez anos com medo de tomar essa vacina e entre um
abrir e fechar de olhos, ela acabou. Ainda sinto um leve dolorido no braço
esquerdo, mas que em breve já terá desaparecido. E agora estou protegida pelos
próximos dez anos contra o tétano. Sensação de dever
cumprido. Um leve alívio.
O que nos causa medo é o desconhecido. É o nosso corpo
gritando, piscando mil luzes de alerta “você está em perigo!”. E para nos
proteger, paralisamos. Para deixar de sentir a sensação estranha e incômoda, angustiante, que
é o medo, desistimos. Adiamos. Esquecemos. Ou fingimos esquecer. O medo nos impede. Paralisa. Ele faz com que
você não faça nada novo, que continue a sua rotina, dentro do planejado, do
conhecido e do seguro.
O mesmo medo que te impede de pular de uma ponte de 20
metros é o que te faz não aceitar aquele emprego novo. O mesmo medo, que te faz
evitar as vacinas, também faz que você não retorne a ligação daquela nova pessoa que apareceu em sua vida. O medo, que
faz com que você evite andar sozinha à noite nas ruas, é o que te faz adiar aquela viagem que você sonhou desde criança e deve fazer sozinha. O medo, que tem impede de fazer uma ultrapassagem perigosa, limita o seu mundo. O medo, que
salva, também condena.
Saindo do posto de vacinação sem nenhuma lágrima prevista
saindo dos olhos, um pensamento me dominava: o medo me tirou quantas dores libertadoras?
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